quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Soneto da folha (Poema)

Voou, solta no vento uma folha
Alegre da bendita liberdade,
Pairando estava assim, pela cidade
Sem ter da direção qualquer escolha.

Vi-a descer do céu acelerada
Caiu-me aos pés, quieta e delicada
Como quem busca à beira da estrada
Repouso do cansaço da jornada.

Recolhi nas mãos o meu tesouro.
Que aquela folhinha inesperada
Valia muito mais que todo ouro.

Pois quem ma trouxe desde a ramada
Foi o mesmo velho vento mouro
Que soprou nas faces da minha amada.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Literatura: Da Angústia a Provocação. (Ensaio)

No princípio era o verbo e ainda o é. O mundo que nos cerca, ou ao menos a percepção que temos dele, é permeado de palavras que o traduzem e assim como a fala o contempla, a escritura o transborda e o que se derrama é o homem se dizendo.

Esta angustiante necessidade de transbordamento, que é inerente à natureza humana, é a origem mesma da escritura, assim como já o disse Roland Barthes: “A escritura começa onde a fala se torna impossível”.

A escritura serve, a um só tempo, a várias falas. É paradoxalmente única e múltipla em si e em seus leitores. É a materialidade da aflição flutuando na inefabilidade de um pluriuniverso de sentidos erigido no desejo de dizer e no recalque de fazê-lo.

É deste mal-estar que se faz a literatura.

Embora sejam as estruturas literárias norteadas pelas relações humanas e pelas estruturas socioeconômicas, há algo de indômito no texto e sua leitura ultrapassa seu papel, seu autor, sua história... e novamente recorro a Barthes: “a leitura seria o lugar onde a estrutura se descontrola”.

A publicação de um livro é, acima de tudo, uma desistência. O momento em que o autor renuncia à tutela de sua criação (ou ela lhe escapa) e vai procurar dizer em outros papeis o que faltou dizer naqueles e, como palavra puxa palavra, a falta coabita com o excesso. Pois, nesta arte de se tentar domesticar palavras, ou não há fôlego para se dizer tudo de uma só vez, ou ainda que se tenha dito muito e bem mais do que se pensa, não se disse tudo e nem o bastante.

Maurice Blanchot afirmou certa vez que, devido ao seu caráter interminável, toda obra literária é solitária. Prefiro, embora alguns me possam acusar de romântico, pensar que ela só é solitária quando fechada sobre uma estante, aí sim, ela é um deserto. Contudo, quando os lábios de um leitor curioso vão soprar a poeira que se possa ter formado sobre sua lombada e seus olhos ávidos vislumbram as primeiras linhas do volume aberto, então ele se torna, novamente, caminho, e a leitura, travessia.

A leitura se identifica tão concretamente com a angustiada solidão do escritor que, a despeito de ser ela um mundo muito vasto, é um mundo no qual só se pisa só. “O homem... lê porque sabe que está só.”, disse Daniel Pennac. A literatura possibilita um universo particular, sustentado na originalidade de cada leitura. Se leio Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, leio o mesmo livro que ele escreveu, mas não leio o mesmo que ele leu e se torno a lê-lo amanhã, minha leitura já não será a mesma de ontem. Tal a dinâmica do texto e das leituras coercíveis dentro dele. Toda leitura é constituída não só do que o leitor apreende, mas também do que lhe escapa.

A literatura é como um animal no qual se monta sem nunca se direcionar o rumo, domar...; e a inquietude do texto, pouco a pouco, passa a ser a inquietude do leitor. Tirar o livro de uma estante é uma provoação, um gesto e coragem. Provoca-se o livro e ele nos agride, choca-nos, subverte-nos... e aquele que buscou ler porque não pode conciliar o sono, já não dorme porque lê.

Será então a literatura a arte de provocar inquietude? Se for, a qualidade de uma obra é mensurável na inquietude que ela pode despertar. Quanto mais agredido eu me sinto, melhor é o livro.  

Se há uma crise da literatura hoje, é a da proliferação de obras mansas. Livros de leitura fácil, conformada, para apascentar bois.

A permanência de uma obra também depende de sua vocação para despertar inferências dentro de novos contextos históricos. Daí, serem as obras-primas, sempre atuais. Se a inferência não é própria da leitura, como disse José Morais, ela é primordial para que uma obra se perpetue através dos tempos.

Todavia, é mesmo a inquietude a grande mágica da literatura. Direta ou indiretamente engajada na luta socioeconômica, ela impõe ao cidadão, com a perspectiva de melhora, o dever de questionar tudo, e o questionamento é o primeiro passo para se mudar o estabelecido.

No Brasil, um país subdesenvolvido, onde apenas 0,05% da população é leitora de obras ficcionais, não é de se espantar que a literatura socialmente engajada nunca tenha alcançado resultados de peso, mesmo no seu auge, nos anos que se seguiram a ditadura instaurada em 1964. Mas posso afirmar, sem risco de erro, que a formação de uma sociedade mais igualitária passa pela democratização da leitura. E assim como a sociedade mudou a literatura, a literatura mudará a sociedade e vice-versa, interminavelmente...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Sei de ti (Poema)

Como sei das coisas sensíveis,
Que não se tocam verdadeiramente.
Sei com a terna inocência
De quem, de repente,
Descobre todas as estrelas do céu,
Sempre distantes demais,
Mas sempre lá, desde que o tempo é tempo.
Mas só eu as vejo assim e só agora,
Com os olhos cheios do teu carinho.

Foi ontem que eu te abracei
Como se abraça o vento
Ou o espaço infinito.
Tua boca unida a minha —
Diziam as mesmas palavras.

Agora busco no ar o teu perfume
E nenhum jardim me consola.

Sei de ti
como sei das coisas que quero
Sôfrega e desesperadamente.
 
Reinaldo Nonnenmacher

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS: REFLEXÕES SOBRE LITERATURA, SOCIEDADE E DIREITO (Resenha)

          Espanta a atualidade de A revolução dos bichos, de George Orwell. Assombra perceber que a metáfora sobre o Estado e autoritarismo, evidente na obra, se encaixa perfeitamente a vários governos contemporâneos. A permanência de uma obra literária depende de sua vocação para despertar inferências dentro de novos contextos históricos. Daí, serem as obras-primas, sempre atuais. Se a inferência não é própria da leitura, pois não está na obra em si, mas no leitor perspicaz, ela é primordial para que uma obra se perpetue através dos tempos: novos leitores, novos contextos e velhas histórias. É o que acontece com o livro de Orwell. Por meio da alegoria do real, Orwell nos faz refletir a respeito dos sistemas de poder e de que forma cooperamos para sua dominação sobre nós. A narrativa alegórica, que pode também ser chamada de paródia ou carnavalização, é um estilo narrativo que parte do princípio da ambivalência. A alegoria depende diretamente da pluralidade de sentidos. A intencionalidade do autor se bifurca em múltiplos significados. O referencial torna-se cambiável e depende da agudeza do leitor para ser encontrado e da astúcia do escritor para conduzi-lo a isso. Há, na narrativa alegórica, o aparente rompimento com a realidade em busca de um universo de riso, no qual tudo é permitido e onde até mesmo o mais insólito acontece. O riso é uma resposta em oposição ao autoritarismo. Assim, mascara-se a intenção, mas evidencia-se o fato. Como espécie de espelho social, as estruturas literárias sempre são marcadas pelas estruturas sociais e, esse traço fundamental de toda boa literatura, se torna muito mais evidente em regimes de exceção, nas quais normalmente se torna um instrumento de denúncia. Pois se “não depende dos artistas que haja ou não haja crise no mundo, depende deles saber utilizar essa crise de forma que lhe seja fecunda e sirva à arte ”. Em contrapartida, haja vista o caráter libertário da literatura, a liberdade da escritura implica na liberdade do cidadão. Assim como diz Sartre, há uma solidariedade da prosa literária com a democracia, espécie de ato de autodefesa, pois este é o único regime no qual ela conserva um sentido.

          Logo, a obra de Orwell é, antes de qualquer coisa, antitotalitária. A obra nos faz pensar que embora se alternem no poder os partidos e os sistemas de governo, ainda prevalecem o interesse pessoal e o lucro. Os interesses do povo são colocados em uma esfera inferior aos interesses do capital.

          A novelinha, espécie de fábula moderna, narra a insólita revolução dos bichos da Granja Solar. Um dia, sem qualquer explicação aparente, um velho e astuto porco chamado Major, desenvolve sua consciência de classe, como animal. Major atribui as desventuras de sua classe ao homem, que é o único animal que consome sem nada produzir, metáfora óbvia para a classe burguesa que explora, por meio do capital, o proletariado. Pouco depois morre Major, mas suas idéias ficam, circulam às escondidas. Nasce uma nova ideologia: o Animalismo. Como toda ideologia de controle de massas, o Animalismo se baseia em um tipo de pensamento muito simples: o justo versus o causador das injustiças. Assim é necessária a derrota ou eliminação do “outro”, origem de todos os problemas. Eliminando-se o “outro”, portanto, elimina-se o problema.

          Bola-de-neve e Napoleão, filhos de Major, se encarregam de disseminar a nova ideologia, notadamente, nasce neste momento o estágio seguinte a consciência de classe: a persuasão, o trabalho de convencer, pelo argumento, os demais a rebelar-se contra o status quo.

          Na ótica da alegoria, vista muito mecanicamente, Granja Solar é o Estado; os bichos são o povo; Jones, o fazendeiro, é o governo é a classe burguesa de quem representa os interesses. No momento em que a revolução dos bichos se dá e Jones é expulso, seria natural imaginar que surgiria no lugar do governo Jones um não-governo, uma comunidade solidária operando para o bem de todos. Todavia, não é isso o que acontece. A sombra do Estado é forte demais para nos livrarmos dela tão rapidamente. Fica nos integrantes da comunidade o inconsciente desejo de controle, de manter o sistema organizado mais ou menos aos moldes de como sempre foi. Inclusive adotam os mesmo esquemas simbólicos: hino, bandeira e etc.

          Napoleão e Bola-de-neve assumem o papel de Governo e para limitar o poder do governo criam Leis. As Leis criadas pelos bichos deveriam impedir que eles se comportassem como humanos. Eles não percebem que estão fadados a reproduzir a mesma desigualdade, uma vez que não desestruturam o sistema significativamente. O poder viciado inda pairava intocável sobre a nova Granja dos Bichos, trocou-se apenas o seu detentor. O poder a que me refiro, é poder que paira sobre e está entranhado no Estado e que se evidencia por meio dos governos e de seus instrumentos de “coerção legitima”. “O que faz com que esse poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso .

          O primeiro sinal mais evidente de que se alterou o governo, não o regime, é o sumiço do leite. Os porcos imaginam ter direito ao leite. Já aí, desaparece a idéia de propriedade coletiva e justiça que haviam motivado a revolução. Pouco depois, no cap. III, o livro diz que “os porcos não trabalhavam”, logo se beneficiam do trabalho alheio e o exploram, mesmo motivo que justificou a derrubada de Jones. Todavia ninguém questiona os novos detentores do poder, pois há o receio de que o antigo opressor volte.

          Ainda assim, tudo parece mais justo e correto, os animais trabalham animados, pois agora trabalham na fazenda que, teoricamente, pertence a todos. Não são capazes de perceber que, agora, a fazenda é, na verdade, dos porcos. Estes por sua vez, concorrem ao poder absoluto usando das influências dentro do grupo. São os partidos!

          A questão da disputa pelo poder entre os porcos se encerra quando um dos porcos, Napoleão, lança mão da opressão do rival, espécie de Gestapo canina. Forma-se aí, evidentemente, o lado mais sombrio do estado: o monopólio da coerção legal. Contudo, fazendo uso desse artifício, Napoleão, vê-se em situação difícil, pois se evidencia nele o comportamento tipicamente “humano” e havia Leis entre os animais que tolhiam esse comportamento. Napoleão então passa a alterar sistematicamente a Lei. O governo de Napoleão, portanto, torna-se eminentemente totalitário. Os bichos já não têm liberdade de dizer o que pensam, não podem reclamar, não podem reivindicar. No entanto, tudo é justificável pela máxima: é preciso evitar o retorno de Jones.

          Como todo governo totalitário, o governo de Napoleão faz uso de forte propaganda política, que se manifesta por meio do personagem garganta. É ele que incute nos outros bichos a idéia de que tudo vai bem e que a granja estava muito melhor do que no tempo de Jones. Até mesmo a “Religião do açúcar”, pregada pelo corvo e usada como arma de alienação dos bichos.

          Mas é a memória a grande inimiga dos bichos. Lembrar é resistir. Sem grande memória eles não conseguem relacionar presente e passado. São incapazes de lembrar os caminhos que percorreram para chegar à revolução.

          Em pouco tempo, os porcos assumem abertamente o comportamento capitalista e os animais já não distinguem os homens e os porcos. Tudo volta a ser exatamente como era antes: alguns poucos explorando o trabalho de muitos.

          Afinal de contas, todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.

A CORUJA (Conto)

O trem apitou longe e, conhecendo bem a via férrea, o velho tentou lhe adivinhar a distância e presumir quanto tempo ainda levaria para que o som, que ainda crescia, começasse a morrer. Seguiu nesse jogo até que o som perdeu-se por completo.   
Catando um ou outro som longínquo ele buscava ainda encontrar alguma fraternidade com as coisas do mundo. Desesperado, tentava se convencer de uma fingida necessidade recíproca entre esses sons e ele. “quem os ouviria se eu partisse?” — repetia metodicamente.
O médico veio lhe ver à tarde e diagnosticou a piora.
Sussurrou à empregada que não havia mais nada o que fazer, senão esperar pelo pior.
O pior? O que seria o pior? Pensava o velho.
Ouviu distintamente um piado — ave de mau agouro.
O velho levou o indicador até os lábios, pedindo silêncio e atentou o ouvido.
— Escutaste isso? — perguntou olhando para o espaço vazio na cama. A velha morrera há anos.
Adivinhava a ave, esperando imóvel como se de pedra, altiva sobre um dos galhos do cinamomo que se estendiam até bem perto da janela. Podia imaginar-lhe os olhos — enormes e milimetricamente circulares. A perfeita geometria do medo.
O velho entendeu o significado.
Estava lá fora, esperando pacientemente. Grande e assustadora como um segredo só seu. 
Puxou as cobertas até a altura dos olhos, transido de horror e perdeu-se em um sono profundíssimo.