No princípio era o verbo e ainda o é. O mundo que nos cerca, ou ao menos a percepção que temos dele, é permeado de palavras que o traduzem e assim como a fala o contempla, a escritura o transborda e o que se derrama é o homem se dizendo.
Esta angustiante necessidade de transbordamento, que é inerente à natureza humana, é a origem mesma da escritura, assim como já o disse Roland Barthes: “A escritura começa onde a fala se torna impossível”.
A escritura serve, a um só tempo, a várias falas. É paradoxalmente única e múltipla em si e em seus leitores. É a materialidade da aflição flutuando na inefabilidade de um pluriuniverso de sentidos erigido no desejo de dizer e no recalque de fazê-lo.
É deste mal-estar que se faz a literatura.
Embora sejam as estruturas literárias norteadas pelas relações humanas e pelas estruturas socioeconômicas, há algo de indômito no texto e sua leitura ultrapassa seu papel, seu autor, sua história... e novamente recorro a Barthes: “a leitura seria o lugar onde a estrutura se descontrola”.
A publicação de um livro é, acima de tudo, uma desistência. O momento em que o autor renuncia à tutela de sua criação (ou ela lhe escapa) e vai procurar dizer em outros papeis o que faltou dizer naqueles e, como palavra puxa palavra, a falta coabita com o excesso. Pois, nesta arte de se tentar domesticar palavras, ou não há fôlego para se dizer tudo de uma só vez, ou ainda que se tenha dito muito e bem mais do que se pensa, não se disse tudo e nem o bastante.
Maurice Blanchot afirmou certa vez que, devido ao seu caráter interminável, toda obra literária é solitária. Prefiro, embora alguns me possam acusar de romântico, pensar que ela só é solitária quando fechada sobre uma estante, aí sim, ela é um deserto. Contudo, quando os lábios de um leitor curioso vão soprar a poeira que se possa ter formado sobre sua lombada e seus olhos ávidos vislumbram as primeiras linhas do volume aberto, então ele se torna, novamente, caminho, e a leitura, travessia.
A leitura se identifica tão concretamente com a angustiada solidão do escritor que, a despeito de ser ela um mundo muito vasto, é um mundo no qual só se pisa só. “O homem... lê porque sabe que está só.”, disse Daniel Pennac. A literatura possibilita um universo particular, sustentado na originalidade de cada leitura. Se leio Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, leio o mesmo livro que ele escreveu, mas não leio o mesmo que ele leu e se torno a lê-lo amanhã, minha leitura já não será a mesma de ontem. Tal a dinâmica do texto e das leituras coercíveis dentro dele. Toda leitura é constituída não só do que o leitor apreende, mas também do que lhe escapa.
A literatura é como um animal no qual se monta sem nunca se direcionar o rumo, domar...; e a inquietude do texto, pouco a pouco, passa a ser a inquietude do leitor. Tirar o livro de uma estante é uma provoação, um gesto e coragem. Provoca-se o livro e ele nos agride, choca-nos, subverte-nos... e aquele que buscou ler porque não pode conciliar o sono, já não dorme porque lê.
Será então a literatura a arte de provocar inquietude? Se for, a qualidade de uma obra é mensurável na inquietude que ela pode despertar. Quanto mais agredido eu me sinto, melhor é o livro.
Se há uma crise da literatura hoje, é a da proliferação de obras mansas. Livros de leitura fácil, conformada, para apascentar bois.
A permanência de uma obra também depende de sua vocação para despertar inferências dentro de novos contextos históricos. Daí, serem as obras-primas, sempre atuais. Se a inferência não é própria da leitura, como disse José Morais, ela é primordial para que uma obra se perpetue através dos tempos.
Todavia, é mesmo a inquietude a grande mágica da literatura. Direta ou indiretamente engajada na luta socioeconômica, ela impõe ao cidadão, com a perspectiva de melhora, o dever de questionar tudo, e o questionamento é o primeiro passo para se mudar o estabelecido.
No Brasil, um país subdesenvolvido, onde apenas 0,05% da população é leitora de obras ficcionais, não é de se espantar que a literatura socialmente engajada nunca tenha alcançado resultados de peso, mesmo no seu auge, nos anos que se seguiram a ditadura instaurada em 1964. Mas posso afirmar, sem risco de erro, que a formação de uma sociedade mais igualitária passa pela democratização da leitura. E assim como a sociedade mudou a literatura, a literatura mudará a sociedade e vice-versa, interminavelmente...