sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Literatura: Da Angústia a Provocação. (Ensaio)

No princípio era o verbo e ainda o é. O mundo que nos cerca, ou ao menos a percepção que temos dele, é permeado de palavras que o traduzem e assim como a fala o contempla, a escritura o transborda e o que se derrama é o homem se dizendo.

Esta angustiante necessidade de transbordamento, que é inerente à natureza humana, é a origem mesma da escritura, assim como já o disse Roland Barthes: “A escritura começa onde a fala se torna impossível”.

A escritura serve, a um só tempo, a várias falas. É paradoxalmente única e múltipla em si e em seus leitores. É a materialidade da aflição flutuando na inefabilidade de um pluriuniverso de sentidos erigido no desejo de dizer e no recalque de fazê-lo.

É deste mal-estar que se faz a literatura.

Embora sejam as estruturas literárias norteadas pelas relações humanas e pelas estruturas socioeconômicas, há algo de indômito no texto e sua leitura ultrapassa seu papel, seu autor, sua história... e novamente recorro a Barthes: “a leitura seria o lugar onde a estrutura se descontrola”.

A publicação de um livro é, acima de tudo, uma desistência. O momento em que o autor renuncia à tutela de sua criação (ou ela lhe escapa) e vai procurar dizer em outros papeis o que faltou dizer naqueles e, como palavra puxa palavra, a falta coabita com o excesso. Pois, nesta arte de se tentar domesticar palavras, ou não há fôlego para se dizer tudo de uma só vez, ou ainda que se tenha dito muito e bem mais do que se pensa, não se disse tudo e nem o bastante.

Maurice Blanchot afirmou certa vez que, devido ao seu caráter interminável, toda obra literária é solitária. Prefiro, embora alguns me possam acusar de romântico, pensar que ela só é solitária quando fechada sobre uma estante, aí sim, ela é um deserto. Contudo, quando os lábios de um leitor curioso vão soprar a poeira que se possa ter formado sobre sua lombada e seus olhos ávidos vislumbram as primeiras linhas do volume aberto, então ele se torna, novamente, caminho, e a leitura, travessia.

A leitura se identifica tão concretamente com a angustiada solidão do escritor que, a despeito de ser ela um mundo muito vasto, é um mundo no qual só se pisa só. “O homem... lê porque sabe que está só.”, disse Daniel Pennac. A literatura possibilita um universo particular, sustentado na originalidade de cada leitura. Se leio Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, leio o mesmo livro que ele escreveu, mas não leio o mesmo que ele leu e se torno a lê-lo amanhã, minha leitura já não será a mesma de ontem. Tal a dinâmica do texto e das leituras coercíveis dentro dele. Toda leitura é constituída não só do que o leitor apreende, mas também do que lhe escapa.

A literatura é como um animal no qual se monta sem nunca se direcionar o rumo, domar...; e a inquietude do texto, pouco a pouco, passa a ser a inquietude do leitor. Tirar o livro de uma estante é uma provoação, um gesto e coragem. Provoca-se o livro e ele nos agride, choca-nos, subverte-nos... e aquele que buscou ler porque não pode conciliar o sono, já não dorme porque lê.

Será então a literatura a arte de provocar inquietude? Se for, a qualidade de uma obra é mensurável na inquietude que ela pode despertar. Quanto mais agredido eu me sinto, melhor é o livro.  

Se há uma crise da literatura hoje, é a da proliferação de obras mansas. Livros de leitura fácil, conformada, para apascentar bois.

A permanência de uma obra também depende de sua vocação para despertar inferências dentro de novos contextos históricos. Daí, serem as obras-primas, sempre atuais. Se a inferência não é própria da leitura, como disse José Morais, ela é primordial para que uma obra se perpetue através dos tempos.

Todavia, é mesmo a inquietude a grande mágica da literatura. Direta ou indiretamente engajada na luta socioeconômica, ela impõe ao cidadão, com a perspectiva de melhora, o dever de questionar tudo, e o questionamento é o primeiro passo para se mudar o estabelecido.

No Brasil, um país subdesenvolvido, onde apenas 0,05% da população é leitora de obras ficcionais, não é de se espantar que a literatura socialmente engajada nunca tenha alcançado resultados de peso, mesmo no seu auge, nos anos que se seguiram a ditadura instaurada em 1964. Mas posso afirmar, sem risco de erro, que a formação de uma sociedade mais igualitária passa pela democratização da leitura. E assim como a sociedade mudou a literatura, a literatura mudará a sociedade e vice-versa, interminavelmente...

2 comentários:

  1. Gostei muito do seu texto. Ele expressa a realidade de quem escreve e, também, da relação da maioria dos brasileiros com a escrita.

    Vanessa
    (Estudante de Letras da Unesc;
    Blog: taticaslingua.blospot.com)

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  2. Realmente não há crise na literatura.
    Existe sim uma pretensão de escritores em ganhar $$ e status com publicações. Sem amor pela arte da escrita.
    Muita gente que tem talento na literatura acaba empobrecendo seu vocabulário, suas ideias, para pescar leitores que não querem nada muito difícil...
    É melhor ter cinco leitores que mergulham nos textos que vender obras para pessoas que usam livros como bibelô de estante.

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